Colaborador Roberto Rocha
Sempre que qualquer pessoa deixa de ser gente e volta a ser ambiente, do ponto de vista material, vem a idéia de associar a natureza aos nossos ancestrais. Quem são eles? Onde estão agora? Se a Lei de Lavoisier estiver correta, então eles continuam por aí, em milhões de pedaços moleculares, nos corpos dos passarinhos, dos vermes da terra, das bactérias, de outras pessoas, nos rios, no ar e onde quer que seja possível existir a natureza. Num momento em que até mesmo o respeito pelas pessoas vivas torna-se um grande sacrifício, entendo que pensar em ancestrais pulverizados pelo mundo possa ser algo quase impossível de desejar e perceber. Mas é assim que funciona! Nossos ancestrais estão mesmo por aí, nos depósitos de sedimentos da geosfera, nos gases da atmosfera, dos rios, dos oceanos e dos corpos de seres, os mais diversos. Quando são "enterrados" em campos próximos de onde sempre moramos, esse ritual tem um significado muito sagrado. É como se tudo que plantamos, colhemos e comemos fossem um pouco de parte deles voltando a circular entre nós. Daí a água e o alimento dessa terra serem sagrados e venerados. É como se estivéssemos outra vez na presença deles. Eles voltam a fazer parte de nós. É como o leite que faz crescer a criança nos primeiros dias de vida. É uma doação imediata. Só as mães possuem esse sentimento de "construção" com amor. Quando nos referimos à Terra como mãe, é nesse sentido que estamos falando. Ela nos nutre com os nossos ancestrais e dos corpos mineralizados de tantas outras criaturas que já não estão entre nós com suas formas convencionais. Nem todos os povos podem perceber isso com a devida rigorosidade. Somente aqueles que são nativos ou indígenas é que podem vivenciar esta experiência. Mesmo assim, terão dificuldades se forem alijados de suas terras e afastados por diversos motivos, menos os sagrados. Fica difícil para um exótico ou alienígena entender esse processo; tal como ocorre com os brasileiros de genética européia morando no Brasil. Por exemplo, os meus ancestrais são portugueses. O pó e a água dos seus corpos estão por lá. Pode ser que eu volte a ter contato com algum deles, caso coma ou beba alguma coisa importada de Portugal, próximo das terras onde eles viveram. Quem sabe um vinho? Um azeite? É aquela antiga explicação que fala do retorno ao pó. Mas não estamos falando de qualquer pó. São os nossos ancestrais que podem estar representados nele. É a certeza de que existe algo sagrado e respeitoso sempre que formos beber a água de um córrego, comer um fruto ou respirar o ar de nossa terra natal. O fato de termos invadido uma terra que era de outros, não nos deixa clara a necessidade de cultuarmos a natureza como algo santo. Talvez isso explique o descaso pelos nossos rios, pelas nossas florestas, pelos nossos animais nativos - que foram substituídos pelas criaturas do Norte, hoje espalhadas por todos os biomas do país, incentivado pelo lucro alto e um PIB gordo, alimentado por pasto também exótico farinhado. Talvez as próximas gerações de brasileiros compreendam o que os "índios" sempre priorizaram: o respeito aos ancestrais e à natureza que é feita deles também. Se não aprendemos a respeitar a vida em geral como algo sagrado, quem sabe possamos ver o mundo diferente se tivermos alguma consideração pelos nossos ancestrais mais recentes, mesmo sendo eles pobremente representados por duas ou três gerações apenas. O que pensar dos indígenas autênticos da terra que tinham aqui o pó de milhares de anos de ancestralidade? E a maior parte deles foi exterminada por motivos econômicos. Me sinto um pouco cúmplice dessa realidade, embora o momento em que isso ocorreu talvez fosse justificado por outras razões, as mais coerentes. Mas não adianta "chorar leite derramado"; mas cabe sim uma profunda reflexão sobre esses fatos. Para que não nos tornemos máquinas de carnes insensíveis, estimuladas por outras máquinas, computadorizadas, desprovidas de sentimento e de passado. Apenas vivendo momentos, forjados, artificiais, decompromissados.
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